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Hidrelétricas

Terça-feira, 18 de Dezembro de 2012

 
     

Hidrelétricas: o mito da energia limpa

  

Pesquisadores avaliam impactos ambientais da hidroeletricidade. No Canadá, em 1993, surgiram os primeiros estudos atribuindo a essas usinas o notório papel de vilãs – emissoras massivas de, entre outros gases, metano.

  

Usina hidrelétrica de Itaipu


Por Henrique Kugler - Ciência Hoje

"Nossa matriz energética é limpa", gabam-se os brasileiros. Afinal, cerca de 80% de nossa eletricidade vêm da força das águas. Gestores públicos apostam na construção quase irrestrita de usinas hidrelétricas – propaladas aos quatro ventos como "ecológicas", "sustentáveis" e de "baixo impacto ambiental". Será? Um olhar atento ao cenário energético brasileiro pode colocar em xeque as certezas do discurso otimista; e um exame minucioso das áreas alagadas para geração de hidroeletricidade incita reflexões que sugerem a derrocada de um mito.

Elencar os méritos da energia hidráulica é tarefa simples. Seus números e vantagens são onipresentes na literatura e no senso comum. Mas essa matriz energética – como todas as outras – tem seus reveses. Além dos inumeráveis desafios sociais e políticos envolvidos na construção de barragens, pesquisadores também demonstram crescente preocupação com um dos problemas ambientais mais notórios de nosso tempo: perda de biodiversidade.

"Tal perda é uma das consequências diretas dos represamentos", diz a bióloga Maria Letizia Petesse, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). "Após formação dos reservatórios, observam-se impactos de longo prazo caracterizados pela progressiva simplificação e homogeneização da fauna local", explica. Ela lembra que tal cenário é agravado pela comum inserção de espécies exóticas nos ecossistemas.

Estudos de caso

A bióloga da Unesp estudou represas no rio Tietê, em São Paulo, e observou que, nas últimas cinco décadas, nada menos que 50% das espécies nativas desapareceram. São seis as barragens ao longo do curso d'água, e nenhuma delas tem sistemas de transposição que permitam passagem a espécies migradoras que, para reprodução, precisariam se deslocar rio acima ou abaixo. Teoricamente, represas devem ter métodos de transposição para peixes, mas nem todas seguem essa exigência – e, segundo Petesse, estudos recentes questionam a eficiência de tais sistemas. Em partes da bacia do rio Tietê, desapareceram migradores como o pintado (Pseudoplatystoma corruscans), dourado (Salminus brasiliensis), jaú (Zungaro zungaro), pacu (Piaractus mesopotamicus) e barbado (Pinirampus pirinampu); espécies exóticas, como corvina (Plagioscion squamosissimus) e tilapia (Oreochromys niloticus e Tilapia rendalli), já compõem 23% da ictiofauna local.

Com a alteração do fluxo das águas, o que um dia foi rio passa a adquirir características de lago. Menos oxigênio, redução das correntezas. Fatalmente, espécies de maior porte e com maiores necessidades de deslocamento são fadadas a desaparecer (ver ‘As barragens e os peixes: o impacto das grandes hidrelétricas nas espécies dos rios represados’, na CH 293).

Impacto semelhante foi verificado pelo biólogo Edmir Carvalho, também da Unesp. Estudando a represa de Jurumirim, no rio Paranapanema, em São Paulo, ele constatou claro declínio na população de peixes da região – tanto em quantidade como em variedade de espécies. Não são apenas peixes ou seres aquáticos as vítimas dos alagamentos; toda a fauna nativa da área é afetada de forma muitas vezes irreversível. "Quando uma represa é formada, um hábitat inteiro é danificado", reforça Petesse, “e a capacidade de abrigar a biodiversidade original é seriamente

Além do ‘ecochato’

Para alguns, preocupações de tal natureza são descabidas – exagero de ambientalistas e ecólogos de plantão. Afinal, os benefícios da geração de energia elétrica superariam eventuais danos a espécies menos afortunadas. Mas um trabalho publicado na Nature, em 2009, lançou novo olhar sobre a problemática.

O cientista ambiental sueco Johan Rockström, do Stockholm Resilience Centre, propôs o conceito de "limites do planeta", hoje amplamente aceito pela comunidade científica. Segundo o pesquisador, as pressões ambientais mais severas que nossa civilização exerce sobre o sistema terrestre são três: em terceiro lugar, mudanças climáticas; em segundo, ciclo do nitrogênio; e, em primeiro, perda de biodiversidade.

A dinâmica ecossistêmica envolvida na construção de barragens, portanto, relaciona-se ao que Rockström aponta como a mais séria questão ambiental de nosso tempo, na qual a pressão antrópica já excedeu os limites seguros que possibilitariam a regeneração natural dos sistemas vivos – ou seja, a civilização impõe ameaça real às dinâmicas naturais de suporte à vida. E, no quesito mudanças climáticas, centrais hidrelétricas também ofertam generosa contribuição negativa.

Vilania nas emissões

Na arena dos debates ambientais das últimas décadas, a tecnologia hidrelétrica ganhou status de "menos pior", pois dizia-se que os níveis de emissões de estufa eram menores comercialmente competitivas. Mas a ilusão acabou. Foi no Canadá, em 1993, que surgiram os primeiros estudos atribuindo a essas usinas o notório papel de vilãs – emissoras massivas de, entre outros gases, metano.

Um dos pesquisadores que se destacou na área foi o ecólogo norte-americano Philip Fearnside, atualmente pesquisador do Instituto de Pesquisas da Amazônia (Inpa). "Até hoje, relatórios de sustentabilidade de empresas mineradoras, em especial ligadas à cadeia do alumínio, gabam-se da fama enganosa da hidroeletricidade como energia. 

Há pouco tempo, na revista Water, Air and Soil Pollution, Fearnside publicou um dado impactante: a usina hidrelétrica de Tucuruí (PA) liberou, em 1990, mais gases de efeito estufa que a cidade de São Paulo! “A publicação causou certo espanto, e a indústria hidrelétrica não mediu esforços na tentativa de mostrar o contrário”, comenta o pesquisador do Inpa. Ele calcula que a emissão da área alagada em Tucuruí naquele ano foi de 1,3 a 1,9 vezes maior que a emissão por queima de combustível fóssil na área metropolitana da capital paulista no mesmo período (ver ‘Gases de efeito estufa em hidrelétricas da Amazônia’, na CH 211). Ele lembra que, em termos de influência climática, o metano – oriundo da decomposição da matéria orgânica submersa pelos reservatórios – é muito mais poderoso que o dióxido de carbono.

No início da década de 1990, imaginava-se que seu impacto era 21 vezes maior; mas, de acordo com a literatura recente, seu poder é 34 vezes mais impactante. Fearnside observa, ainda, que o processo de emissão desse gás é particularmente intensificado nas regiões tropicais. Afinal, a temperatura é mais elevada e há maior estoque de carbono submerso nas áreas que um dia abrigaram luxuriante vegetação. Incendiando o debate, o pesquisador do Inpa publicou em junho, em parceria com o ecólogo espanhol Salvador Pueyo, um trabalho na revista Nature Climate Change detalhando imprecisões nos números oficiais. “A Eletrobrás fez um cálculo errado para todos os 217 grandes reservatórios existentes no Brasil no ano 2000”, aponta Fearnside. A metodologia usada pela empresa teria subestimado os impactos ambientais das barragens em termos de emissões de gases de efeito estufa.

Danos ambientais de menor Ibope

À extensa lista de impactos decorrentes de empreendimentos hidrelétricos, adicionam-se alguns itens nem sempre lembrados. “A qualidade da água nos reservatórios dessas usinas costuma ser bastante prejudicada”, diz o engenheiro Célio Bermann, do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP), “pois a capacidade natural de depuração nos rios é seriamente prejudicada após a construção das barragens”. Segundo o engenheiro, isso invalida o argumento segundo o qual grandes hidrelétricas podem assegurar, também, estoques de água potável.

Bermann cita casos notórios. A usina hidrelétrica de Americana (SP) teve seu desempenho prejudicado em função do alto nível de degradação ambiental decorrente do barramento; e a proliferação de algas na represa de Salto Grande (SP), devido a processos de eutrofização, tornou a água simplesmente imprestável para consumo.

Na usina de Ilha Solteira, na fronteira entre São Paulo e Mato Grosso do Sul, a situação também não é das melhores. Pesquisadores apontaram toxicidade aguda em águas superficiais da área alagada pela barragem. “Em Tucuruí (PA), após a formação do reservatório, também foram contabilizados índices anormais de febre amarela e malária”, diz Bermann, lembrando que tais áreas, quando mal administradas, são propícias à disseminação de vetores de doenças endêmicas.

Hidrelétricas causam também insuspeitos impactos geofísicos. O imenso volume de água dos reservatórios exerce pressão não usual sobre o subsolo e, segundo informações disponíveis no sítio da Eletrobrás, as empresas geradoras de hidroeletricidade “devem estar preparadas não só para os terremotos naturais, mas, sobretudo, para aqueles pelos quais elas próprias são responsáveis”. São os chamados sismos induzidos, não raros e capazes de oferecer riscos à barragem ou à população local. O Observatório Sismológico da Universidade de Brasília tem feito vários trabalhos acerca do tema, indicando clara correlação entre reservatórios e ocorrências sísmicas.

Eis que surge, no calor dos debates, o discurso segundo o qual pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) seriam a solução para os expressivos impactos dos grandes projetos de hidroeletricidade. O tema é polêmico, mas, ao que tudo indica, PCHs estão longe de receber veredito de inocência ambiental (ver ‘De gota em gota’, na CH 288).

Burocratas alagados

Diante de tantos desafios, projetos hidrelétricos requerem gestão cautelosa. “Mas, em geral, empresas operadoras de usinas jogam a responsabilidade para o poder público; e fica naquela história de ‘um delega para outro’”, critica Bermann, que foi assessor do Ministério de Minas e Energia durante os dois primeiros anos do governo Lula. Segundo ele, não há qualquer mecanismo legal que defina a quem cabe a “irresponsabilidade pela má gestão dos reservatórios”. O professor da USP afirma que nem empresas, nem poder público estão cientes de suas responsabilidades.

“‘Impacto ambiental’ se tornou um termo meramente administrativo”, condena.

E, se o assunto é má gestão, deve-se mencionar a elevada taxa de perda ou desperdício observada no Brasil. De acordo com Bermann, “nossas perdas em transmissão e distribuição de energia elétrica ficam na média dos 15%”. Nos Estados Unidos e no Japão, essas perdas não excedem 8% e 7%, respectivamente – e a taxa aceitável segundo o Banco Mundial é de 6%.

“É perfeitamente possível reduzir as perdas do sistema elétrico brasileiro para 10%”, garante Bermann. Como? A partir de investimentos em manutenção de linhas, troca de transformadores com vida útil ultrapassada e, sobretudo, alteração dos hábitos de consumo. Além disso, pesquisadores recomendam a repotenciação dos sistemas – processo que envolve reabilitação, reconstrução ou reparos nas usinas hidrelétricas existentes, de modo a otimizar processos de geração. A propósito, o biólogo Jean Remy Guimarães, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, lembra que “a energia que se espera da usina hidrelétrica Belo Monte (PA) poderia ser obtida com a troca das turbinas de usinas existentes por turbinas mais eficientes disponíveis no mercado”.

Ao comentar sobre Belo Monte, aliás, Bermann toca em uma questão delicada: segundo ele, “são as empreiteiras que, hoje, definem a política energética no Brasil”. Fearnside não deixa por menos ao lembrar que “há generosos financiadores de campanha eleitoral envolvidos em tal questão”. O ecólogo do Inpa ressalta que o plano de expansão energética do Ministério de Minas e Energia prevê, entre 2011 e 2020, 48 novos grandes projetos – 30 deles na Amazônia Legal. “É enorme o orçamento previsto para hidroeletricidade; com tal recurso seria plenamente viável investir em energias alternativas e, sobretudo, na redução do desperdício”, opina Fearnside.

Segundo ele, há quem defenda a não construção de novas usinas hidrelétricas até que se resolva o problema do desperdício. “É importante destacar que não demonizo a hidroeletricidade”, esclarece Bermann. “Apenas chamo a atenção para o descaso e irresponsabilidade com que empreendimentos hidrelétricos são desenvolvidos em nosso país.”

 

Ciência Hoje/EcoAgência de Notícias

  
  
  
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