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Retomadas indígenas

Segunda-feira, 13 de Junho de 2022

 
     

Moradia destinada a estudantes indígenas garante espaço de sociabilidade tradicional

  

Ocupada desde o início de abril deste ano, após um longo processo de reivindicação, a CEI abriga, até o momento, 46 pessoas, em sua maioria mães com seus filhos e estudantes que ainda permanecerão por mais tempo na Universidade

 

  

Foto: Flávio Dutra/JU    


Por Leticia Pasuch, Cecília Malta Martini - Jornal da Universidade

“Estamos retomando o que é nosso.” É assim que Woie Xokleng, mestrando em Educação e representante do coletivo de estudantes indígenas da Universidade, define a conquista recente e histórica para ele e os demais universitários indígenas da UFRGS, a nova moradia. Localizado no Câmpus Saúde, o prédio anteriormente destinado à Creche da Universidade – e que se encontrava desocupado mesmo antes da pandemia – é hoje a Casa do Estudante Indígena (CEI). 

Logo na entrada – e também pelos corredores – os moradores registraram pinturas que demarcam as etnias e línguas dos que vivem ali. Há, ainda, um memorial de retratos que personificam a luta e a bravura de estudantes que buscam um lugar para pertencer.

Ocupada desde o início de abril deste ano, após um longo processo de reivindicação, a CEI abriga, até o momento, 46 pessoas, em sua maioria mães com seus filhos e estudantes que ainda permanecerão por mais tempo na Universidade, considerados prioridade. Os demais seguem morando na Casa do Estudante Universitário (CEU). Por ser um ambiente pequeno, nem todos conseguem, por enquanto, mudar-se para o espaço.

O fogo é um ímã

Na CEU, o quarto andar é onde se concentram os estudantes indígenas, segundo a estudante de Direito Viviane Lopes, da etnia Kaingang; ela segue morando ali, já que, em breve, terminará a graduação. Na sua opinião, apesar de alguns vizinhos serem mais abertos, a convivência é complicada. “A gente busca viver junto, estar presente nos mesmos espaços, e eles se incomodam muito com isso”, lamenta. A experiência de Ruan Potiguara, estudante de Medicina e morador da CEI, foi semelhante quando vivia na CEU: “Passei um mês sem falar com ninguém, preso no quarto”. 

A rotina na CEI é descrita pelos estudantes como mais livre, por poderem finalmente conviver sem restrições, compartilhando tarefas, comidas e saberes. Ter os filhos das alunas por perto, o que não era permitido na CEU, contribui para o sentimento de acolhimento, também intensificado nas rodas de conversas ao redor da fogueira – acesa todos os dias, sempre à noite. Woie define o fogo como o centro de tudo.

Essência de tudo, o fogo, que finalmente pôde ser aceso dentro da Universidade, chama os demais para a roda apenas pelo cheiro da fumaça. “É como um imã”, define. A reunião junto da fogueira simboliza o fortalecimento do grupo. 

As pinturas feitas nas paredes – grafismos Xokleng e Kaingang – também demarcam a casa como seu território. “São marcas familiares, como se fossem sobrenomes”, explica o mestrando. Cada forma nas pinturas representa uma família, mas em um sentido diferente: “são todos os seus ancestrais, seu povo”, nas palavras de Woie. Ele reforça, no entanto, que o ambiente ainda está em processo de construção, já que não foi planejado para eles, e precisa ser transformado.

A realidade fora da aldeia

Os estudantes contam que, ao sair do convívio familiar para iniciar a graduação na cidade, passam por um grande choque cultural, trazendo à tona muitas inseguranças. Acostumados com a liberdade, podendo transitar tranquilamente pela aldeia e viver com seus parentes, pajés e anciãos, estar longe disso é um desafio. Eles relatam que é como se o indígena caminhasse sozinho ao longo da vida acadêmica, pois seus colegas não compreendem sua cultura. 

Viviane, que sempre morou na sua comunidade na Terra Indígena (TI) Votouro, em Benjamin Constant do Sul, cogitou desistir da graduação devido às dificuldades por que passou. “Uma realidade completamente diferente da que eu vivi”, diz, principalmente em relação ao seu curso. Segundo ela, a comunidade acadêmica do Direito tem dificuldade para receber e compreender estudantes indígenas e demais minorias.

Para Ruan, uma das formas de amenizar a situação foi entrar para o coletivo indígena. Pertencente à TI Potiguara, no litoral norte da Paraíba, está tendo sua primeira vivência longe da mãe e do pai. Agora morando mais próximo dos parentes na CEI, o estudante se sente mais compreendido.

Vindo de uma aldeia de tamanho reduzido localizada em Santa Catarina, na TI Ibirama La Klãnõ, o ambiente onde Woie vivia era familiar. Sair para a cidade, rodeado de pessoas que não conhece, traz medo. Sendo o único Xokleng na UFRGS, sente falta de praticar sua língua. “As primeiras palavras que eu falei são Xokleng. Sinto muita falta do meu território, da minha aldeia, mas agora também estamos construindo esse território-aldeia dentro da Universidade”, observa.

No cotidiano, faz falta viver em conjunto, buscar espiritualidade em sua terra e praticar sua própria língua. Com a Casa do Estudante Indígena, é isso que eles tentam resgatar, focando em trazer as práticas que identificam seus povos: as artes, as danças e os rituais.

Retomada e permanência

Para os estudantes indígenas, a formação universitária é diferente: eles buscam levar para os seus territórios o que aprenderam. No caso de Ruan, a escolha do curso de Medicina se deu por influência da avó, parteira da sua aldeia – ela acompanhou inclusive o nascimento dele. Vê-la manusear as plantas medicinais onde vivia foi o que mais motivou o estudante a seguir a profissão. Seu sonho é levar a obstetrícia para seu território e poder trabalhar com o parto humanizado – já que, nas aldeias, o índice de mortalidade no nascimento é alto pela falta de acesso ao serviço.

Após concluir a Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, na Universidade Federal de Santa Catarina, Woie veio cursar o mestrado na UFRGS objetivando retomar o conhecimento tradicional nas escolas indígenas. Ele afirma que, enquanto o estudante branco foca exclusivamente nas disciplinas da faculdade, o indígena não vem apenas cursar, vem também ocupar e retomar. “A gente já sai da aldeia pensando: ‘Eu vou ocupar a Universidade’.”

Quando perguntados sobre o que a CEI representa para os povos indígenas, os três estudantes são categóricos: representa uma luta. Para Viviane, o espaço, mais aconchegante, traz, agora, a sensação de liberdade de poderem ser quem são. “Transmite a vivência dos povos indígenas e suas conquistas, que se dão sempre a partir de muita luta, sofrimento e obstáculos”, diz. 

Hoje, Woie sente como se tivesse voltado para casa, e está mais motivado a continuar seus estudos. Ruan concorda, afirmando que seguirá, junto com os demais estudantes, na incansável luta para que jamais se deixe esquecer que o Brasil – e a Universidade – são também territórios indígenas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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