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Povos indígenas

Quinta-feira, 06 de Abril de 2023

 
     

RS tem 65 territórios aguardando demarcação e situação de povos indígenas no estado preocupa

  

Além da falta de garantia de habitação, pesquisador e indígena listam alimentação, saúde e educação como problemas decorrentes da falta de políticas públicas; entenda

  

Coletivo Catarse/uso não comercial    


Por Flávia Simões - Humanista

A mais de cinco mil quilômetros de Porto Alegre, em Roraima, os yanomami enfrentam uma emergência sanitária frente ao garimpo ilegal que ameaça suas terras. A crise, agravada nos últimos quatros anos, sob o Governo Bolsonaro, ocupou a pauta da mídia e das autoridades no início de 2023. Enquanto isso, aqui mesmo, no Rio Grande do Sul, indígenas travam batalhas menos midiáticas. Você sabia, por exemplo, que 65 territórios aguardam demarcação no estado? Foi o que o Humanista descobriu ao apurar a atenção que o poder público tem dado – ou deixado de dar – aos povos originários em solo gaúcho.

As reivindicações entre as diferentes etnias são diversas e esbarram em um elemento central: a falta de prioridade, da qual decorre também um déficit de políticas públicas que atendam as suas especificidades. O cenário impõe às comunidades lutas por direitos constitucionais básicos, como moradia. “A gente faz as reivindicações para garantir, de alguma forma, os nossos direitos. Mas é difícil. E de quatro anos para cá, o desmonte foi total: das assistências, programas sociais”, desabafa Moisés da Silva, vice-líder da aldeia Kaingang Oré Kupry. “Tentaram terminar com os programas para não auxiliar a nossa sobrevivência.”

Para se ter uma ideia do descaso, o orçamento do RS para 2023 destina apenas R$ 10 mil a serem repassados para os municípios para “segurança alimentar dos povos indígenas”.  É o menor valor dentre os demais programas assistenciais da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos.

Na Capital, quase às luzes da avenida Protásio Alves, uma das vias mais movimentadas, mais de 70 pessoas das comunidades Kaingang e Xokleng reivindicam a sua permanência no Morro Santana, em área verde coberta por mata nativa e cuja posse é reclamada pela Maisonnave Companhia de Participações – como este jornal-laboratório mostrou em fevereiro. A decisão mais recente do TRF4 (Tribunal Regional da 4º Região) manteve liminar que assegura aos indígenas a permanência na ocupação, batizada de “Retomada Gãh Ré”, e encaminhou o processo para o sistema de conciliação. Outros povos também lutam por terras no município, como os Guarani Mbya, na Ponta do Arado, na Zona Sul, alvo de especulação imobiliária de luxo.

Tanto a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) quanto o governo estadual foram contatados para comentar a situação dos povos originários, mas não retornaram até a publicação da reportagem, nesta terça-feira (4).

Números denotam décadas de atraso

Das 65 terras indígenas gaúchas em processo demarcatório, seis ficam na Capital ou Região Metropolitana. Dessas, só uma é regularizada: a Cantagalo, também da etnia Guarani Mbya. As demais seguem em estudo, apenas o primeiro passo até a eventual demarcação. Dados da Funai indicam 140 terras ocupadas por aqui para um contingente de 32,9 mil indígenas, segundo levantamento específico contido no Censo de 2010 (a estimativa mais recente disponível). 

Em estudo: Fase na qual são realizados os estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais, que fundamentam a identificação e a delimitação da área indígena.

Delimitadas: Fase na qual há a conclusão dos estudos e que garante que estes foram aprovados pela presidência da Funai através de publicação no Diário Oficial da União e do Estado em que se localiza o objeto sob processo de demarcação.

Declaradas: Fase em que o processo é submetido à apreciação do Ministro da Justiça, que decidirá sobre o tema e, caso entenda cabível, declarará os limites e determinará a demarcação física da referida área objeto do procedimento demarcatório, mediante Portaria publicada no Diário Oficial da União.

Homologadas: Fase em que é feita a publicação dos limites materializados e georreferenciados da área, através de Decreto Presidencial, passando a ser constituída como terra indígena.

Regularizadas: Fase em que a Funai auxilia a Secretaria de Patrimônio da União (SPU), como órgão imobiliário da União, a fazer o registro cartorário da área homologada, nos termos do artigo 246, §2° da Lei 6.015/73.

De competência exclusiva da Funai, a regularização fundiária é uma das reivindicações mais antigas dos povos indígenas, a exemplo do extenso número de comunidades que ainda estão na fase de estudo – ou sequer chegaram lá. Com um processo de demarcação complexo e demorado, a garantia da terra pode levar anos.

“Nas últimas décadas, por uma deficiência de investimento, de capacitação ou até de recursos de pessoal e financeiros, a Funai enxugou. A quantidade de pessoas que trabalham nela é ínfima comparado com aquilo que seria demandas”, denuncia o antropólogo José Otávio Catafesto, professor da UFRGS e pesquisador do tema. “Se o Estado brasileiro é omisso na Amazônia, com relação aos indígenas, imagina como é que não é no restante do Brasil e, particularmente, aqui no Rio Grande do Sul!”

A expectativa é que com a criação do Ministério dos Povos Indígenas – com a primeira ministra mulher indígena, a deputada federal Sônia Guajajara (PSOL/SP), na história do país – os processos ganhem celeridade e demarcações avancem. Está previsto para os próximos meses, segundo Catafesto, o início de três estudos de demarcação no Rio Grande do Sul. O número, apesar de irrisório ante à quantidade de terras que aguardam por esse processo, pode ser considerado um avanço. Enquanto isso, a demarcação do território de Rio dos Índios, em Vicente Dutra, na região noroeste, deve ser concluída ainda no primeiro semestre de 2023. 

A culpa é de quem? 

Se de um lado o Estado falha ao não assegurar a moradia, do outro, quanto à garantia de recursos básicos como saúde, educação e alimentação, a falha não é menor. Com o ‘desloteamento’ da Funai, o órgão passou a ficar responsável apenas pela demarcação das terras e possíveis problemas dentro de territórios. Assuntos ligados à saúde e à educação são de responsabilidade dos municípios e estados.

Em Porto Alegre, por exemplo, um posto itinerante e multidisciplinar, subordinado à prefeitura, faz o atendimento de cinco aldeias da Capital. Quando o assunto é educação, fica sob encargo da pasta estadual da área a constituição de um departamento especial para criação, implementação e regularização de escolas especiais. Em ambos os casos, no entanto, as equipes destinadas para cuidar dos indígenas costumam ser reduzidas e não possuem o preparo necessário para tratar com as particularidades dos povos, avalia o professor José Otávio Catafesto.

Na aldeia Kaingang Oré Kupri, na divisa entre Porto Alegre e Viamão, uma reforma na escola dentro de dentro da comunidade está prevista para iniciar nos próximos dias, conta o vice-cacique, Moisés Silva. As aulas, ministradas pelos próprios indígenas, contemplam o ensino fundamental. No ensino médio, os jovens são encaminhados para escolas públicas não-indígenas.

Para Catafesto, uma das razões para o atendimento precário aos povos indígenas é justamente a ausência de políticas públicas pensadas especificamente para eles. A descentralização da gestão atribui a prefeituras e estados a elaboração de medidas, o que acaba não sendo feito. “Eles implantam políticas genéricas para as populações de baixa renda. Não existe uma específica, embora a constituição diga que tenha que ter”. O professor dá como exemplo a distribuição de alimentos.

“Para fazer política específica tem uma demanda preliminar que é o levantamento participativo. Você chegar lá na comunidade e ter um tempo de sentar e conversar com eles, perguntar como é que ela [aldeia] quer que se adéque ao seu projeto habitacional. Como é que ela quer que se adeque a cesta básica que está sendo encaminhada", explica Catafesto. "Esse caso da cesta básica é vergonhoso, coisas que muitas vezes não conseguem nem usar porque não há uma adequação da cesta básica à dieta específica daquela comunidade.”

Apesar disso, o texto do orçamento do Estado prevê que as cestas básicas devem “observar a especificidade cultural de cada etnia”. Segundo Moisés, porém, a cesta básica recebida mensalmente pela Fasc (Fundação de Assistência Social e Cidadnia), mantida pela prefeitura de Porto Alegre, ainda é insuficiente.

A luta continua 

Nesse campo de incertezas e luta por direitos básicos, José Otávio Catafesto ressalta a atuação dos próprios indígenas. “O que se vê avançar nas políticas é muito fruto de pessoas engajadas que conseguem aproveitar as brechas do Estado do que propriamente políticas definidas”, argumenta. Moisés da Silva é uma dessas lideranças. O vice-cacique aproveita seus conhecimentos e contatos para levar não só as demandas da sua comunidade, como também de demais indígenas, para conhecimento do poder público.

Agora, a prioridade da aldeia Oré Kupry é melhores condições de habitação. E a criação do Ministério dos Povos Indígenas representa um alento no que diz respeito à representação frente ao poder público nessa e em outras reivindicações. Ainda que haja dúvidas quanto à atuação da pasta, incluindo a destinação de recursos humanos e financeiros pela União, é com boas expectativas que a novidade é recebida. “Eu acredito que já é muito importante. Então, espero que esteja dentro do Ministério dos Povos uma política pública permanente para dar assistência às famílias vulneráveis”, afirma Moisés, em tom de esperança.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Humanista - EcoAgência

  
  
  
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