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Quinta-feira, 15 de Janeiro de 2009
  
O Jornalismo e a ética do "limite permitido"

Muitas empresas, brasileiras ou não, adotam uma ética bastante particular e usam a legislação (que elas constroem com seus lobbies , com a cumplicidade de parlamentares e governantes comprometidos com os seus interesses) para justificar a não adoção de medidas, processos de fabricação etc corretos. Fazem apenas o que está "dentro do limite permitido", mesmo sabendo que, com isso, penalizam os cidadãos.

  
Por Wilson Bueno
  

O cinismo de muitas empresas, fontes prestigiadas da nossa imprensa, tem crescido a olhos vistos, sob a complacência de jornalistas e veículos, e ele se respalda numa teoria bastante singular conhecida como "a ética do limite permitido".

Vamos explicar. Uma empresa vende um produto (ou deixa de fazer alguma coisa que seria razoável, justa, lógica) que sabidamente faz mal (ou não serve para coisa alguma como o Vick VapoRub), mas, ao ser questionada, sai com essa: "está dentro do limite permitido, obedecemos à legislação".

Os exemplos se contam às centenas. Podemos citar alguns deles.

A Petrobrás entrega um diesel e uma gasolina sujíssimos, compromete a saúde dos brasileiros particularmente nas grandes cidades, deixa o ranking da sustentabilidade do Bovespa, mas alega que "segue a legislação", o que, nesse caso, é absolutamente falso porque não cumpriu uma determinação antiga do Conama. Ainda bem que saiu do Ethos, que precisa pegar a dica e fazer uma limpezinha nos seus quadros. Há outras empresas predadoras por lá.

As empresas agroquímicas vendem produtos que emporcalham o solo, a água, o ar (e mata muita gente, basta consultar as estatísticas da ANVISA ou as pesquisas da Fiocruz) mas têm a resposta na ponta da língua: "está tudo dentro do limite permitido". Em um número infindável de casos, vendem aqui produtos proibidos lá fora, não autorizados pelo FDA (que só é invocado quando legitima a comercialização do produto e esquecido quando não os homologa). Há situações (estranhíssimas e que merecem maior investigação) em que os agrotóxicos (são veneno mesmo e não remedinho de planta!) são classificados em níveis de toxidade menores do que em outros países, o que favorece o seu uso em determinadas culturas. Mas aqui pode, "está dentro do limite permitido". Elas negociaram isso, impuseram isso, com o beneplácito de muita gente.

As empresas de biotecnologia (tenho uma desconfiança enorme de empresas que levam santo no nome!) produzem transgênicos que, segundo elas, não fazem mal algum (a raposa tomando conta do galinheiro!), mas não querem aceitar a rotulagem, não querem que saibamos se estamos comendo transgênicos ou não. E já ganharam de mão beijada a CTNBio, que está liberando transgênicos pelo ladrão. Mas tudo está dentro do limite permitido.


A Nestlé teve recentemente um volume exportado de farinha láctea devolvido pelos EUA porque continha pesticida mas que é vendida no Brasil, já que aqui está tudo "dentro do limite permitido". E eu nunca imaginei que produto consumido por crianças poderia ter limite permitido de veneno!

As montadoras fazem recall todas as semanas, mas se safam da total falta de controle de qualidade (que põe em risco a vida dos motoristas) publicando um anúncio nos jornais (outro dia havia um de uma fabricante de motos que mal dava para ler, de tão pequeno que era!). Fazem isso ("está dentro do limite permitido") e vão dormir em paz, depois de deixarem o "pepino" na mão dos consumidores. Ou alegam que está no manual, como fez a Volks com o Fox, que vitimou mais de uma dezena de motoristas com a armadilha montada no seu banco traseiro. Uma tecnologia (???) que não era exportada e que só contemplava os brasileiros, porque aqui "estava dentro do limite permitido".


A Big Pharma vende no Brasil remédio proibido em outros lugares, mas ninguém pode mexer com ela porque "a legislação permite". E faz propaganda enganosa, depois retirada do ar, mas ninguém fica sabendo o nome das infratoras (o sigilo está dentro do limite permitido para encobrir as empresas irresponsáveis!) e , como prática, já incluem a multa na campanha de propaganda.


Há algum tempo, uma situação dessas chegou a ser cômica (se não fosse trágica): fabricantes de queijos brancos (aquele queijo Minas, como a gente diz em São Paulo), ao serem flagradas com índices preocupantes de coliformes fecais (cocô) nos seus produtos, saíram com essa: "tudo bem, tem cocô mesmo, mas está dentro do limite permitido". E eu nem sabia que havia limite permitido para cocô em queijo!


Enfim, muitas empresas, brasileiras ou não, adotam uma ética bastante particular e usam a legislação (que elas constroem com seus lobbies , com a cumplicidade de parlamentares e governantes comprometidos com os seus interesses) para justificar a não adoção de medidas, processos de fabricação etc corretos. Fazem apenas o que está "dentro do limite permitido", mesmo sabendo que, com isso, penalizam os cidadãos.


É preciso apertar a corda, botar a mão no bolso, enfiar algemas nestas empresas socialmente irresponsáveis, não cidadãs, predadoras, que continuam afrontando o interesse público, com o objetivo óbvio de aumentar os seus lucros a qualquer custo.


O jornalismo (e o jornalista em particular) e a sociedade como um todo não podem se contentar com esta desculpa esfarrapada e devem ir mais a fundo, devem exigir mudanças na legislação, quando ficar claro que as empresas estão tirando vantagem da nossa omissão ou falta de coragem.


A legislação é propositalmente cheia de buracos para favorecer os grandes interesses e já cunhamos inclusive uma expressão feliz para indicar o que acontece nestes casos em que a empresa "faz apenas o que está dentro do limite permitido": tudo acaba em pizza.


Certamente, acabará em pizza a tragédia do buraco do Metrô, mesmo com todos os laudos oficiais indicando que o Consórcio Via Amarela e a Companhia do Metrô foram responsáveis por ela. A pena vai prescrever, ninguém vai ser efetivamente punido e as construtoras continuarão contemplando os parlamentares com doações polpudas às vésperas de campanhas eleitorais (como gostam de políticos as nossas principais construtoras, não é verdade? Por que será?).


Calma, ninguém está acusando esta ajuda generosa de irregularidade: ela também "está dentro do limite permitido", assim como o desmatamento da Amazônia, a contaminação dos hospitais e a morte trágica de criancinhas, a invasão da faixa de Gaza e a venda do Vick VapoRub.


Infelizmente, casos como esses citados não cheiram bem. Mas não adianta reclamar: as empresas vão alegar que o fedor está dentro do limite permitido. Como diz o ditado, senta que o leão é manso.


Em tempo: Você já leu O mundo segundo a Monsanto, de Marie-Monique Robin? Você lá leu A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos, de Marcia Angell?


Puxa, aproveite o fim das férias e o Carnaval que logo vai chegar para colocar suas leituras em dia. Vai descobrir que algumas empresas fazem tudo dentro e fora do limite permitido. E continuam saltitantes por aí. Com dioxina, agente laranja e um passivo ambiental de dar dó. Mas que, assim mesmo, conseguem fechar parcerias com universidades importantes e empresas de pesquisa do melhor nível. A USP e a Embrapa que nos perdoem mas não há parceiros melhores por aí?

Quando uma empresa contrata um funcionário, imagina-se que ela tenta descobrir a sua trajetória profissional e pessoal, os seus "antecedentes", como a gente diz. Está na hora de as universidades e as empresas públicas em geral também fazerem o mesmo antes de estabelecerem parcerias com determinadas empresas. Não é apenas olhar para a tecnologia que determinadas empresas estão oferecendo, ou o retorno que pode ser lucrativo, mas consultar o seu passado, as suas intenções presentes e futuras. A parceria deve ser também socialmente responsável.

Eu sei, todas estas parcerias estão dentro do limite permitido. Tudo foi aprovado pelos auditores, pelos colegiados. O Marcos Valério circulou livremente no Governo, os "mensaleiros" também, tudo "dentro do limite permitido".

Só a ética é que, infelizmente, está abaixo do limite desejável. Cana para esta gente. Afinal de contas, esse não é o país do etanol?

Wilson da Costa Bueno é jornalista, professor da UMESP e da USP, diretor da Comtexto Comunicação e Pesquisa e presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico.

  
             
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