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Bom dia, 29 de mar
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Quarta-feira, 24 de Março de 2010
  
FORA DOS TRILHOS

No lugar dos trilhos da João Pessoa, existe hoje um corredor de ônibus. O que não impede os bondes de circularem por ali. A Redenção tornou-se ponto de convergência de bondes que para lá carregam muitos jovens. Assim como as antigas linhas de bondes, cada um desses malfazejos bondes contemporâneos traz a sua identificação explícita para que ninguém se perca. Têm nomes essas gangues juvenis denominadas “bondes” e algum signo – tênis, bonés, etc. – que as distingue das demais. E a Redenção, que já sediou partidas de polo, tornou-se palco de disputas entre esses grupos.

  
Por Maria Helena Ruschel
  

Tomei conhecimento das aquarelas de José Lutzenberger – coleção Porto Alegre Antiga - através da divulgação feita pelo Studio Clio.

”Despedida no trem” pareceu-me muito representativa da época.

Nessa tela, o artista retrata uma cena comum da época: para se deslocarem de uma cidade à outra, as pessoas iam de trem. Não deveriam fazê-lo com muita frequência, haja vista a demora da viagem, muito superior à atual com os meios de transporte agora disponíveis. Por esse motivo, provavelmente, as pessoas viajavam menos que nos dias atuais e permaneciam fora mais tempo. O que tornava cada viagem um acontecimento, com muita bagagem e muitas despedidas.

Também sobre trilhos andava o transporte urbano de Porto Alegre. Linhas de bonde ligando os bairros ao Centro. Quem pegasse, por exemplo, o bonde Menino Deus rumo ao Centro, passava pela Avenida João Pessoa, ladeando o Parque Farroupilha, agora e então conhecido como Redenção.

No lugar dos trilhos da João Pessoa, existe hoje um corredor de ônibus. O que não impede os bondes de circularem por ali. A Redenção tornou-se ponto de convergência de bondes que para lá carregam muitos jovens. Assim como as antigas linhas de bondes, cada um desses malfazejos bondes contemporâneos traz a sua identificação explícita para que ninguém se perca. Têm nomes essas gangues juvenis denominadas “bondes” e algum signo – tênis, bonés, etc. – que as distingue das demais. E a Redenção, que já sediou partidas de polo, tornou-se palco de disputas entre esses grupos.

O que disputam eles? Territórios, à moda dos felinos?  Quem deixa sua marca registrada em maior número de prédios e monumentos? Eventualmente, o troféu do vencedor pode ser uma baixa nas hostes adversárias.

Não resisto à tentação de comparar esses grupos com os “Jornaleiros Meninos”, outra aquarela de Lutzenberger, também da coleção Porto Alegre Antiga.

O artista retrata os “Jornaleiros Meninos” como um alegre grupinho reunido em alguma esquina do Centro. Posso vê-los contando suas moedas, apreciando as paqueras nas janelas, cobiçando os doces da Confeitaria Central, correndo atrás da carrocinha dos cachorros. Praticavam, talvez, algum campeonato, como apostar quem atirava mais pedras nos pobres animais recolhidos pela carrocinha.

No fim do dia, os meninos jornaleiros podiam retornar para seus lares de bonde. Para isso dava a féria do dia. A passagem era baratinha.

Encontravam as famílias reunidas em frente aos casebres onde moravam. Aguardava-os uma xepa rala e um colchão de palha. Era dura a vida, então.

Onde estarão agora os Jornaleiros Meninos?

Continuam pelo Centro. Mudaram de ramo. Agora são trombadinhas afanando a bolsa de alguma senhora distraída. Pedem esmolas nas sinaleiras – onde também é possível afanar bolsas, relógios, celulares – e troquinhos na porta dos supermercados. Vendem bala de goma no trem urbano, onde também distribuem folhetinhos expondo as mazelas da família. Família – pai, mãe e filhos residindo em algum casebre – que, na maioria das vezes, não têm.

Conseguida a féria do dia, reúnem-se no vão de um prédio, ou sob uma marquise, e dormem sobre um colchão de concreto após amortecerem os sentidos com a droga do momento.

Alguns dormem em colchões de espuma. Nos abrigos públicos e nos centros de reabilitação de crianças e adolescentes.

Mudaram de ramo, os meninos que circulam pelas ruas centrais. Também mudaram de nome. Agora são Meninos e Meninas de Rua. Pois é, a rua deixou de ser privilégio dos meninos. Nos dias atuais, as meninas dividem o espaço com eles.

Mudaram de ramo e mudaram de nome os meninos de Lutzenberger e também se tornaram invisíveis, já que todos passam e não os enxergam. O que não os torna inexistentes. Pelo contrário. Tornaram-se tão onipresentes que mudaram os hábitos de toda população.

As famílias já não se reúnem em frente aos casebres, às casas e aos prédios. Nos automóveis, as bolsas passaram do banco do carona para o porta-malas; nas ruas, as mulheres se agarram às suas bolsas com mão de ferro e olho vigilante. As crianças já não brincam nas ruas, e os adultos evitam a sombra das alamedas ao fazerem suas caminhadas na Redenção.

Eis aí os antigos “Jornaleiros Meninos”. Nos bondes, ou fora deles, pequenos ou crescidos, das esquinas do Centro espalharam-se para todos os lados. Não têm nada. Nem rumo, nem trilhos que os levem a lar algum. E a lugar algum. Não são senhores de si. São, no entanto, os senhores do espaço público da Capital.

Porto Alegre saiu dos trilhos, ou eu sou saudosista em relação a uma época que nem vivi?

  
             
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