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Direitos Humanos

Sábado, 30 de Março de 2013

 
     

A próxima luta

  

Quatro anos atrás, uma polêmica decisão do SFT determinou a saída dos fazendeiros da terra indígena Raposa Serra do Sol. Antropólogo da Unesp analisa as mudanças ocorridas desde então, como a expansão da população e do rebanho bovino e a preocupação crescente das lideranças locais com o crescimento sustentável

  


Por Pablo Nogueira - UNESP Ciência

São quase 11h e a aldeia Maturuca, situada na terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, está em clima de expectativa. Seus habitantes aguardam um ilustre visitante, que, esta manhã, está um pouco atrasado. O adiantado da hora faz os tuxauas – termo local para cacique – debaterem o cancelamento da grande dança de recepção que está programada. De repente um homem esguio, de bermuda e barba rala desce de um carro enlameado. É o visitante, que saúda os tuxauas e culpa as condições da estrada pelo atraso.
 
Segue-se um corre-corre e logo oitenta crianças e jovens da etnia Makuxi, vestidos de maneira tradicional, espalham-se pelo pátio da aldeia. Começam a dançar e a cantar a plenos pulmões. À medida que o visitante caminha por entre eles, é envolvido pelos dançarinos, que seguem seus passos. A canção de boas-vindas, entoada em língua macuxi, diz “você vem de longe/ as meninas te saúdam”.
 
O recém-chegado, recebido de forma tão vibrante, é o antropólogo Paulo José Brando Santilli. Professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp em Araraquara, Santilli também coordena o Centro de Estudos Indígenas Miguel A. Menendéz. Seus estudos etnográficos na região, que começaram nos anos 1980, aproximaram-no das lideranças e o levaram a colaborar intensamente na luta pela criação da terra indígena Raposa Serra do Sol. O mesmo engajamento que lhe granjeou a estima dos indígenas tornou-o também persona non grata para as autoridades do Estado de Roraima. Após uma ausência de quase uma década, Santilli começou a fazer novamente visitas de campo à região em fins de 2012. Durante seis dias, em fevereiro passado, suas atividades foram acompanhadas pela reportagem de Unesp Ciência.
 
A Raposa Serra do Sol é habitada por cerca de 20 mil indígenas das etnias Makuxi, Uapixana, Ingarikó e Patamona. O processo de demarcação e homologação levou décadas, e foi maculado por perseguições, prisões, incêndios e assassinatos de nativos. De um lado estava o Conselho Indígena de Roraima (CIR), entidade que representava a maior parte dos indígenas.
 
Opondo-se a eles estavam garimpeiros e fazendeiros, estabelecidos na região desde meados do século 20, e que contavam com o apoio do governo estadual. No centro da disputa entre os grupos estava o modelo de demarcação a ser seguido para a criação da terra indígena.
 
Os fazendeiros defendiam uma demarcação “fatiada”. Nesse modelo, as propriedades rurais permaneceriam em suas mãos, sendo ladeadas por extensões descontínuas de terra indígena. Com o objetivo de reforçar sua posição, chegaram a patrocinar a criação de outra entidade indígena, que também se manifestava favoravelmente à demarcação fatiada. Já os indígenas do CIR solicitavam a criação do modelo contínuo, que implicava desativação das fazendas e saída de seus proprietários da região.
 
O enfrentamento entre os dois grupo ganhou repercussão internacional e perdurou até 2009. Nesse ano, numa decisão histórica que foi noticiada até no The New York Times, o Supremo Tribunal Federal determinou a instauração da terra indígena de acordo com o modelo contínuo, e estipulou a retirada de todos os não indígenas de uma área de 1.750.000 hectares.
 
Ao retomar o trabalho de campo na região, Santilli espera compreender melhor de que forma a vitória afetou o modo de vida das etnias que vivem ali e discutir com elas estratégias para lidar com os desafios que enfrentarão daqui para a frente.
 
Nosso giro acompanhando o antropólogo começou com uma viagem de cerca de 320 km entre Boa Vista, a capital do Estado, e o município de Uiramutã, um enclave não indígena incrustado no interior da Raposa Serra do Sol. Sua permanência, ratificada pelo STF, foi interpretada como uma concessão aos grupos apoiados pelo governo do Estado. O caminho para Uiramutã é feito cruzando-se várias estradas que também ficaram de fora da demarcação, permanecendo sob a responsabilidade do Estado e de municípios, embora estejam dentro da Raposa Serra do Sol.
 
Apesar da distância relativamente curta, a viagem levou cerca de 6 horas, devido principalmente ao péssimo estado das estradas e das pontes. Segundo Santilli, o governo do Estado reduziu ao mínimo a manutenção destas vias depois da retirada dos fazendeiros. Um sinal de que as paixões que animavam os dois lados da contenda ainda não arrefeceram totalmente, apesar da vitória de um deles Em certos trechos, a sensação que se tem é a de estar participando de um verdadeiro rally.
 
Junto com o antropólogo viajava o tuxaua Orlando Pereira da Silva, veterano na luta pela terra. Entre irmãos, filhos, primos, sobrinhos e netos, a parentela de seu Orlando chega a quase 300 pessoas. A maior parte delas vive perto de Uiramutã. Assim como as estradas, também sua família ainda exibe sinais das décadas de enfrentamento que assolaram a região. Grande parte dela – inclusive o neto, que é o prefeito de Uiramutã – era contrária à demarcação contínua. Entre as causas para isso estaria o medo, fomentado pelos proprietários rurais, de que, sem os brancos por perto, os indígenas experimentassem uma forte carência, com diminuição de vestuário e até de comida. “Esse meu neto teve uma formação diferente [da minha], só estudou na escola dos brancos. Não conhece a realidade do movimento indígena”, avalia seu Orlando.
 
E as desavenças familiares ganharam outro combustível com as eleições municipais do ano passado. As máquinas partidárias interferiram no cotidiano da região. Houve vários casos de indígenas que foram trazidos dos pontos mais remotos da Raposa Serra do Sol para Uiramutã, a fim de serem registrados como eleitores pela primeira vez. Dentro de uma mesma família, candidatos de partidos diferentes disputaram votos e apoios, provocando brigas. “Eles ficaram estarrecidos com as disputas que aconteceram dentro de algumas famílias. Este ainda é um momento de curar as feridas”, explica Santilli.
 
A trajetória de vida de seu Orlando ajuda a ilustrar o longo percurso seguido pelos indígenas da região. Até meados do século 20, o preconceito era tão grande que muitas vezes os próprios índios costumavam referir-se a si mesmos com o termo genérico de caboclos. Como tantas crianças caboclas, Orlando foi encaminhado por sua família para trabalhar gratuitamente numa grande fazenda, em troca de utensílios como armas e ferramentas. “Como não tínhamos escolas, havia a ideia de que esse período nas fazendas serviria para dar alguma formação aos indígenas. Lá eles aprenderiam a trabalhar, a lidar com gado, talvez até a ler e escrever”, explica Santilli. Orlando não chegou a aprender a ler, em compensação tornou-se um exímio tocador de sanfona. Depois saiu da fazenda e ganhou o mundo. “Nessa época eu bebia, andava pelos garimpos, tocava nas festas… Ajudei a fazer bagunça”, lembra.
 
Com 18 anos de idade, Orlando foi eleito tuxaua. Teve apoio até dos brancos, que esperavam que, por conta de sua criação numa fazenda, o novo líder se mostrasse complacente com antigos males, como o alcoolismo (que grassava entre os índios) e a atuação descontrolada dos garimpeiros. Mas ele seguiu na direção oposta. Desde o início se manifestou favorável a controlar o garimpo, e procurou reforçar no povo o sentimento de comunidade. Chegou a orientar os indígenas para que não frequentassem mais as festas dos fazendeiros, onde era comum que passassem por humilhações. A partir de 1971, quando a militância indígena começou a se organizar para lutar pela terra, ele esteve na linha de frente do movimento. Sua militância o levou muitas vezes a Brasília, e fez com que recebesse ameaças de morte.
 
Hoje a nova geração vive uma realidade bem diferente. Benefícios como a aposentadoria rural e o bolsa família proporcionaram maior segurança financeira para que essas pessoas enviassem seus filhos à escola. Estas funcionam nas aldeias, e seu programa abrange também as línguas e tradições dos povos nativos. Formados nestas escolas, os filhos de Orlando falam de suas origens num tom celebrativo e militante. Seis deles atuam nos setores de saúde e educação indígenas, em postos e escolas espalhados pela Raposa Serra do Sol.
 
Filha de Orlando, a agente de saúde Leodora Pereira recebe Santilli no posto de saúde onde trabalha, nas vizinhanças de Uiramutã. Leodora enfatiza que muitos atendimentos envolvem remédios fitoterápicos produzidos a partir do conhecimento tradicional da etnia Makuxi. São tinturas, extratos, pomadas e garrafadas, usados de forma complementar à medicação alopática, que tratam desde micoses até inflamações uterinas. “Nós aperfeiçoamos os medicamentos tradicionais, eles agora têm data de validade. E agora temos enfermeiros e médicos indígenas, não dependemos de outras pessoas para nos atenderem”, comemora.
 
Uma das questões que interessam ao antropólogo é a maneira como os índios daqui se relacionam com o gado. Tradicionalmente, as etnias daquela região são exímias cultivadoras de mandioca, e complementam a dieta com caça e pesca. O gado bovino foi introduzido no século 18. Com o tempo os fazendeiros brancos consolidaram uma pecuária extensiva e de baixa produtividade, calcada no uso de vastas extensões de terra plana.
 
A partir dos anos 1970, a Igreja Católica começou a doar reses para as comunidades indígenas, como estratégia para apoiar a reivindicação da posse da terra. Com o tempo, a caça e a pesca foram escasseando, e os habitantes foram se tornando mais e mais acostumados à carne do gado. Hoje, as estimativas quanto ao total de animais chegam a 70 mil cabeças. Quatro anos atrás, antes da demarcação, o número era a metade, evidenciando uma tendência de crescimento rápido do rebanho. “Esse é um caso único de índios que estão se tornando pecuaristas”, afirma Santilli.
 
Em nossos deslocamentos pela Raposa Serra do Sol, vimos diversas pequenas estruturas cercadas, denominadas retiros. É neles que as reses são guardadas depois de passarem o dia alimentando-se nos pastos. A maior parte do rebanho pertence às aldeias, algo fácil de compreender, levando-se em conta que, nestas paragens, o conceito de propriedade privada não vai muito além da posse de objetos pessoais. Mas as criações particulares de gado existem, e estão encorpando. Já se encontram indígenas proprietários de centenas de cabeças, e que pagam a outros indígenas para que atuem como seus empregados.
 
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