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Contaminação química

Terça-feira, 14 de Junho de 2022

 
     

Guerra contra os agrotóxicos

  

O assentamento Santa Rita de Cássia II sofre com a deriva de agrotóxicos em suas lavouras por parte de uma fazenda vizinha, contaminando produtores e causando perdas na produção

  

Divulgação Assentamento Santa Rita de Cássia II    
Estragos da Primeira Deriva, em novembro de 2020


Por Susi Tesch*

O município de Nova Santa Rita, no Rio Grande do Sul, concentra a maior produção de arroz agroecológico do país, uma experiência popular do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). De acordo com o Instituto Rio Grandense do Arroz (Irga), o MST é considerado o maior produtor de arroz orgânico da América Latina e segue nessa posição há mais de dez anos. Porém, esses agricultores vêm travando uma batalha contra os agrotóxicos de uma fazenda vizinha desde novembro de 2020, data da primeira deriva (quando a aplicação de herbicida é levada pelo vento para fora do local desejado e atinge outras áreas), atingindo todo o assentamento. Famílias afetadas registraram o primeiro Boletim de Ocorrência Policial (BO) na Polícia Civil. Houve contaminação de pessoas e perda de grande parte da produção das lavouras.

Em dezembro de 2020, os assentados denunciaram a deriva na Tribuna Popular da Câmara de Vereadores de Nova Santa Rita. Houve também coleta de amostras pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e pela Secretaria Estadual da Agricultura. Em janeiro de 2021, o Mapa informou que o laboratório de Goiás, para onde foram enviadas as amostras, não tinha recursos para identificar os possíveis agrotóxicos pulverizados e que, por isso, foram enviadas para Minas Gerais. Relatou ainda que uma das amostras (frutos de maracujá) havia sido perdida no transporte.

Em abril de 2021, o relatório do setor de orgânicos do Mapa apresentou os resultados das análises do laboratório de Minas Gerais, identificando a presença dos agrotóxicos Bifentrina e Glufosinato.

A certificadora da produção orgânica da Cooperativa Central dos Assentamentos do RS (COCEARGS) tomou conhecimento dos resultados da análise do Instituto de Tecnologia de Pernambuco (ITEP), que identificou a presença de Florpyrauxifen bentyl, composto do agrotóxico Loyant.

Em fevereiro de 2021, com ajuda de diversas entidades ambientalistas, os produtores ajuizaram uma ação cautelar com a finalidade de garantir a preservação das amostras e viabilizar a produção antecipada de provas. Em março de 2021, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o Conselho Estadual de Direitos Humanos do RS (CEDH-RS) e o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do RS (CONSEA-RS) emitiram pareceres em solidariedade às famílias atingidas pela deriva, apontando os riscos e sugerindo ao Executivo Municipal a necessidade de pôr fim à pulverização de agrotóxico em Nova Santa Rita.

A Justiça Federal determinou a suspensão de uso de agrotóxico por um dos arrendatários da fazenda vizinha ao assentamento Santa Rita de Cássia II, sob pena de aplicação de multa de cem mil reais em caso de descumprimento da decisão. Ainda em março de 2021, quatro dias após a decisão judicial, o fazendeiro descumpriu decisão liminar da Justiça Federal. Agricultores do assentamento foram contaminados devido à pulverização de agrotóxico. Alguns apresentaram sintomas de intoxicação, como enjoos e dores de cabeça. Após o novo ataque, o Tribunal Federal da 4ª Região deferiu parcialmente o efeito suspensivo ao agravo do fazendeiro, limitando a liminar. A decisão do TRF-4 proíbe o fazendeiro de utilizar os agrotóxicos 2,4-D e Loyant, por qualquer modalidade, e veda o uso de qualquer agrotóxico por pulverização aérea.

Em julho de 2021 foi publicada a lei nº 1.680/21, que estabelece algumas restrições e condições para pulverização com agrotóxicos na região de Nova Santa Rita.

Uma Ação Civil Pública (ACP) foi ajuizada em setembro daquele ano para garantir a indenização das famílias atingidas pela deriva e pedia a criação de polígonos de proteção para garantir a produção agroecológica dos assentamentos da reforma agrária da Região Metropolitana de Porto Alegre que possuam certificação orgânica.

Em 4 de novembro de 2021, a Justiça Federal deferiu parcialmente a liminar requerida na ACP Indenizatória, determinando que a proprietária e todos os arrendatários da fazenda vizinha ao assentamento Santa Rita de Cássia II se abstenham de realizar a pulverização aérea de agrotóxicos nas lavouras de arroz existentes em suas respectivas propriedades. Ainda determina que a União, o Estado e a Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luis Roessler (Fepam) elaborem, executem e apresentem planos de fiscalização. Após decisão judicial, no dia 12, ocorreu o terceiro ataque de pulverização de agrotóxico na área. No dia 30, em um novo atentado, ainda mais criminoso, famílias sofreram intimidações durante três horas ininterruptas por aviões de pulverização. As aeronaves pousavam perto da lavoura de arroz e decolavam no instante seguinte, causando caos e perturbação no assentamento. Os aviões pulverizaram herbicidas na área limítrofe ao assentamento, o vento estava forte, o que indica que existia a probabilidade do agrotóxico se espalhar pelo assentamento.

Essa situação tende a se agravar, caso a Projeto de Lei nº 6.299/2002 seja aprovada e regulamentada pelo Senado, liberando mais ainda o uso de agrotóxicos e afrouxando fiscalizações e burocracias. 

Confira os vídeos com depoimento dos agricultores do assentamento disponibilizados pela Amigos da Terra Brasil:

·         A Deriva em Nova Santa Rita #1

·         A Deriva em Nova Santa Rita #2

·         A Deriva em Nova Santa Rita #3

 

O que muda com o PL 6.299/2002

O Projeto de Lei nº 6.299/2002 foi aprovado em fevereiro deste ano na Câmara dos Deputados excluindo o controle da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), do Ministério da Saúde, do Ministério do Meio Ambiente e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama). O PL prevê que o controle da autorização passará a ser feito apenas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Mesmo sem o controle, essas instituições ainda podem emitir alertas sobre o perigo das substâncias, porém, esses alertas podem ser ignorados. E a competência de multar empresas e institutos de pesquisa passa ser do Mapa. Porém, a lei ainda precisa ser aprovada e regulamentada pelo Senado.

O relator do projeto, deputado Luiz Nishimori (PSD-PR), alterou o termo “agrotóxico” para “pesticidas” quando utilizado na lavoura. Quando usados em florestas e ambientes hídricos, passam a ser chamados de “produtos de controle ambiental”, e o registro será feito pelo Ibama. A proposta se preocupa em reduzir processos e burocracia na tramitação dos pedidos de registro de pesticidas durante o processo de registro.

Para o coordenador do Centro Ecológico, agrônomo Laércio Meirelles, a principal consequência para sociedade e o meio ambiente, caso o PL não seja barrado pelos senadores, será a liberação do uso de agrotóxicos. “Com mais de 35 anos de trabalho, considero que a relação custo-benefício do uso de agrotóxico não é boa para sociedade. O custo é maior que o benefício. Quem vende agrotóxico vende de forma concreta, ou metafórica, focando-se no benefício. Não que não haja benefício, mas os custos são maiores. O benefício de usar pesticida na lavoura de milho, e com isso economizar em mão de obra, é um benefício econômico. Mas tem um custo financeiro, atualmente, com preços bastante caros, tem o custo ambiental, entre outros”, explica o agrônomo.

Consequências do agrotóxico

A pesquisadora Larissa Bombardi denuncia nas redes sociais que “nossa comida tem sido intensamente envenenada por agrotóxicos que causam intoxicações sérias aos agricultores e agricultoras que manuseiam essas substâncias. Mas não só eles, como toda população que se alimenta dessa produção envenenada, pode sofrer intensamente com os danos causados pelo uso do agrotóxico”. Mas não é só o envenenamento da comida, nossos biomas acabam sendo profundamente afetados também.

O agrônomo Laércio Meirelles explica que os agrotóxicos são moléculas químicas sintéticas, ou seja, geradas em laboratório. A natureza nunca teve a ideia nos seus bilhões de anos de desenvolvimento de sintetizar essas moléculas. Essa é uma ideia da nossa espécie, que faz isso em laboratórios altamente sofisticados, algumas dessas moléculas sintetizadas em laboratório acabam virando agrotóxicos. Então a natureza não tem necessariamente os caminhos, a fisiologia do planeta, para metabolizar esses agrotóxicos, causando impacto na vida como um todo. Contaminam as águas, a microfauna, e microflora. Na base da cadeia alimentar, na base de todos os ciclos da natureza, estão seres muito pequenos, chamados micros. Essa vida toda é afetada, tendo impacto do agrotóxico.

Mas o agrotóxico não vem sozinho, não cai do céu. Vem a partir de um modelo de produção que pressupõe monocultivos em grandes áreas, mais um impacto no meio ambiente, nos nossos biomas. Porque agora nós estamos falando em desmatar para plantar grandes lavouras em monocultivo. “Não é só o agrotóxico que causa o impacto nos nossos biomas, mas o modelo de agricultura no qual o agrotóxico se insere. Impacto bastante negativo, se insere na conta desse modelo de agricultura, no campo da agroecologia entendem que a forma como a agricultura está desenhada não é a melhor para sociedade como um todo. Pode ser a melhor para determinados grupos de interesse, principalmente as grandes empresas que produzem agrotóxicos, adubos químicos, maquinaria agrícola, sementes transgênicas e eventualmente também para os grandes produtores. Mas a sociedade como um todo, agricultura familiar, os povos de comunidades sazonais, agricultura camponesa, perdem sistematicamente esse universo da sociedade, perdem com esse modelo de agricultura”, conclui o agrônomo.

Mitos e verdades sobre agrotóxico

Conforme a pesquisadora Larissa Bombardi, é mito que lavando bem os alimentos é possível eliminar os agrotóxicos. Lavar bem (seja com o que for, sabão, água sanitária, bicarbonato de sódio etc) pode eliminar alguns tipos de agrotóxicos somente da superfície dos alimentos. Internamente, eles continuarão contendo resíduos de agrotóxicos que foram aplicados desde o início do processo de crescimento.

Outro mito muito difundido é o de que é impossível produzir em larga escala sem a utilização de agrotóxicos e, por isso, eles são essenciais quando pensamos na alimentação popular.

A verdade é que somente ingerindo alimentos agroecológicos ou orgânicos teremos a segurança de que nosso alimento está realmente livre de substâncias tóxicas.

Ecologização da agricultura

Além da agricultura orgânica, o do bioinsumo no Brasil já vem ocorrendo. O Ministério da Agricultura (Mapa) tem regularizado mais e mais produtos biológicos, microrganismos que são benéficos no uso da agricultura e não causam mal para saúde nem para o meio ambiente e também compostos minerais, nutritivos, que também no dia a dia costumamos chamar de biológico, ainda que na verdade eles sejam minerais.

Hoje no Mapa existem 400 produtos já legalizados para uso da agricultura, sendo que aproximadamente 250 deles são para a agricultura orgânica, mas que podem ser usados também na agricultura convencional. E outros 130 são usados na agricultura convencional, sem mesmo ter certificado como produtos orgânicos. Por eles foram feitos e desenvolvidos e registrados no Mapa para o uso da agricultura convencional. “Numa rápida olhada pela agricultura convencional, mesmo em grande escala, observamos como as próprias empresas produtoras de agrotóxicos têm cada vez mais disponibilizado produtos biológicos para os grandes, médios e pequenos produtores não orgânicos”, acrescenta Laércio Meirelles.

Grande processo de ecologização da agricultura ou ecologização da propriedade são passos que se dá, mas o passo de apenas deixar de usar o agrotóxico e usar um produto biológico, ainda que conveniente e oportuno, é insuficiente para poder reverter o quadro. “Se o agricultor substituir o agrotóxico pelo biológico numa lavoura de 50 mil hectares de soja, um agrotóxico a menos, a natureza agradece. Nossa água, nossa saúde agradecem. Mas não minimiza de forma significativa o impacto no bioma, porque já houve desmatamento, e há cultivo em grandes áreas em monocultivo”, exemplifica o agrônomo.

A sociedade tem se levantado contra o agrotóxico, e os fabricantes não desconhecem isso e sabem que têm que estar preparados com o imunobiológico para manterem seus lucros. Em um momento em que a sociedade pressiona por uma regulamentação mais inteligente, mais efetiva, mais conveniente para todos os agrotóxicos. E as próprias empresas do setor de agrotóxicos surgem com os produtos biológicos.

Atualmente no Senado, o Projeto de Lei nº 3.668/2021, de autoria do senador Jaques Wagner (PT/BA), trata de pesquisa, experimentação e incentivos à produção de bioinsumos para a agricultura. Essa proposta pretende acelerar a produção brasileira de bioinsumos para combate de doenças e pragas na lavoura de monocultivo, não representando perigo para a sociedade e o meio ambiente.

Produção orgânica e agroecológica

Alimentos orgânicos são produzidos sem sementes transgênicas, agrotóxicos ou outras substâncias que prejudicam a natureza e a sociedade. O agroecológico vai além, baseado no princípio da agroecologia. A agroecologia vem do movimento político e social de distribuição de terra de forma mais igualitária onde a produção é orgânica.

Uma das dificuldades para a agricultura orgânica é a falta dos benefícios de políticas públicas de apoio, como no campo da pesquisa. “Os principais organismos de pesquisa pública como a Embrapa Fertilizantes, as universidades, e outros órgãos estaduais que fazem pesquisa, ainda não priorizaram o tema da agricultura orgânica, do ponto de vista institucional. Não significa que não existam profissionais nessas instituições que se dedicam ao trabalho, com muita dificuldade para realização de pesquisa em relação à agricultura orgânica. A crítica às instituições de pesquisa que não colaboram na geração de informações necessárias para agricultura orgânica ter melhores resultados na sua produção. E o fato de nós ainda não termos a capacidade de compartilhar com a velocidade que o momento requer o conjunto de informações que nós já temos na agricultura orgânica. Uma coisa é gerar outra coisa é socializar”, comenta Laércio Meirelles.

O agricultor tem dificuldades práticas, às vezes no controle de pragas, dificuldade em acessar as sementes que são mais adequadas ao seu contexto, por não serem produzidas ou estarem disponíveis na sua região. Algumas práticas de cultivos da agricultura orgânica podem demandar mais mão de obra, mas a agricultura como um todo tem sofrido com a escassez de mão de obra no país. “Nos cultivos que a agricultura orgânica aumentou a mão de obra, isso pode ser um problema, em outros cultivos, a agricultura orgânica pode até causar diminuição da mão de obra”, explica o agrônomo.

A sociedade busca cada vez mais qualidade de vida, e nessa qualidade de vida encontram-se os alimentos orgânicos. Esses alimentos geralmente estão disponíveis para vendas em feiras orgânicas, alguns supermercados já possuem o produto orgânico, com o selo, porém o custo para o consumidor é maior do que na feira. A funcionária pública Cristiane Brandão relata: "Sempre que posso, priorizo os alimentos orgânicos. Simplesmente porque não quero me encher de veneno, além de estar fomentando a economia local, valorizando o pequeno produtor”. Ela costuma comprar em feirinhas ecológicas, como a do bairro Menino Deus, em Porto Alegre. Também costuma pedir entrega.

 

 

*Aluna da disciplina "Jornalismo e Meio Ambiente", ministrada no último semestre pela professora Eloisa Beling Loose e pelo tutor Sérgio Pereira, responsável também pela edição final da reportagem.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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