Desde então se tenta buscar um culpado para tal ação ou traição, como preferem muitos... seja qual for a qualificação da ação, a verdade é que os Povos do Brasil e seus verdadeiros líderes, aqueles eleitos de forma transparente, democrática e legítima se sentem mais que traídos, se sentem nada... diante de tamanha arrogância do Estado Brasileiro, mais especificamente do Executivo através da Fundação Nacional do Índio – FUNAI. SE fizermos uma análise dos fatos ocorridos em 2009 e que acarretaram irreparáveis perdas para os Povos Indígenas, entre os principais estão as 19 condicionantes do STF quando da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e logo depois a reestruturação da Funai, as grandes vítimas são os Povos Indígenas das regiões Nordeste, Sul e Sudeste.
Talvez seja por isso que o movimento de resistência às mudanças trazidas pelo Decreto 7.056/2009, seja liderado exatamente por esses Povos Indígenas, não menos legítimo e menos importante do que os movimentos já liderados por Povos de outras regiões, ao contrário do que tentam dizer aqueles comprometidos com a política equivocada, desrespeitosa e preconceituosa desenvolvida pelo atual governo, como se os movimentos liderados por Povos e Organizações do Norte do País fossem mais legítimos.
Desde o primeiro instante em que os Povos Indígenas ocuparam a sede da Funai em Brasília, estávamos presentes e pudemos presenciar um lamento ao mesmo tempo consciente, triste e aguerrido carregado de revolta, mas também de uma força indizível, quando uma líder dizia: “extinguir os Postos da Funai dentro dos nossos territórios é tirar a única referência que temos do Estado Brasileiro no cotidiano dos nossos Povos”. A frase da Líder indígena nos remete a uma reflexão do indigenismo brasileiro desde o século passado, quando as políticas desenvolvidas pelo Estado sempre foram extremamente assistencialistas, sempre primaram por tratar o índio como incapaz de decidir seu próprio destino e assim aos poucos foram minimizando e reduzindo seus direitos sendo o último deles o direito a ser escutado e consultado.
Se a reestruturação da Funai faz parte de uma estratégia de governo para enxugar as estruturas dos órgãos públicos, por que é que ao longo dos últimos anos os Povos Indígenas não foram preparados para isso? Por que é que não se fortaleceu a autonomia interna, o poder e a capacidade de gestão dos recursos naturais, a capacidade legal de defesa dos seus direitos? Por que é que o Estado brasileiro resistiu tanto em reconhecer que é necessário promover o desenvolvimento com identidade através de políticas claras e eficazes para os Povos Indígenas? Ao contrário, cada vez mais se dilapidou o patrimônio dos Povos Indígenas com ações desenvolvimentistas intervindo em seus territórios. Além disso, a Funai foi largada nas mãos de pessoas que não conhecem absolutamente nada de questão indígena e que quiseram “brincar de índio” durante três anos e que de repente decidiram que não querem mais essa brincadeira e que agora querem brincar de bang bang, colocando a polícia federal para prender índio que se manifesta, índio que protesta e que reivindica seus direitos...aliás esse é o resultado antecipado do novo Estatuto dos Povos Indígenas que está tramitando no Congresso Nacional e que acaba com a obrigatoriedade da proteção do Estado Brasileiro aos Povos Indígenas (tutela). Se estamos estarrecidos com o Decreto 7.056, melhor prepararmo-nos melhor para recebermos a bomba que é o Estatuto que a Funai e a CNPI - Comissão Nacional de Política Indigenista -- elaboraram para os nossos Povos.
A Primeira Conferência Nacional dos Povos Indígenas apontou caminhos importantes para a política indigenista do País, como a criação do Parlamento dos Povos Indígenas que tinha como objetivo articular as ações de Estado numa parceria respeitosa entre Povos Indígenas e o Estado Brasileiro. Porém criou-se a CNPI – Comissão Nacional de Política Indigenista -- que se perdeu de seus verdadeiros objetivos e do seu compromisso com os direitos humanos e fundamentais dos Povos Indígenas, servindo apenas para legitimar atos como o decreto 7.056/2009. Aconselho todos a estudarem melhor a Convenção 169 e seu artigo 6º que é escandalosamente claro quando diz que as consultas aos Povos Indígenas devem ser feitas através de suas instituições representativas Ou seja, a CNPI não é uma instituição representativa dos Povos Indígenas, é uma Comissão de governo! Até quando irão distorcer os conceitos contidos na Convenção para encobrir interesses escusos, tentando dizer que a CNPI foi consultada em lugar dos Povos Indígenas para legitimar questões do nosso interesse?
É fácil entender a revolta dos nossos Povos, que há um século recebem ações sempre criadas e implantadas sem a sua participação porque alguém as julgou importantes, e agora no apagar das luzes de 2009 o Presidente Lula decidiu mais uma vez que extinguiria uma série de direitos sem se quer consultar os Povos Indígenas, violando flagrantemente o Artigo 6º da Convenção 169/OIT que ele mesmo em 2004 ratificou e depositou o compromisso de cumpri-la junto às Nações Unidas, assim como a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, igualmente firmada pelo Estado Brasileiro.
As declarações do governo e seus parceiros dão conta de que o Decreto que reestrutura a Funai é bom e que trará muitos benefícios aos Povos Indígenas e ao órgão indigenista. A pergunta que não quer calar é: Então por que é que se fez tanto segredo em torno da discussão e da formulação de dito Decreto que foi segredo de Estado durante meses?! Por que é que não se permitiu a participação dos Povos Indígenas, servidores da Funai, sindicatos e todos os seguimentos interessados na discussão? Que papel foi esse do Governo Democrático, Popular e Participativo?
Território Indígena Serrinha, 20 de janeiro de 2010.
[1] Socióloga, Povo Indígena Kaingáng, Prêmio Nacional de Direitos Humanos, Prêmio Antonieta de Barros de Direitos Humanos.