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Quinta-feira, 17 de Setembro de 2015
  
A crise da gestão ambiental: ataques simultâneos à ciência e ao patrimônio natural dos gaúchos

Vemos agora um raro exemplo de um governo eleito atacando a ciência. Seria ele autoritário? Sim, estamos vivendo uma espécie de autoritarismo às avessas que resulta de um candidato sem programa que, agora no governo, faz uso da tábua rasa da crise contábil para justificar a completa ausência de políticas públicas

  
Por Rualdo Menegat
  

Somos um Estado que de modo pioneiro desenvolvemos uma consciência ambiental que foi a base para a institucionalização de políticas de controle, planejamento e gestão ambiental. Desde os anos 1970, quando a luta ambiental começou a tomar certa repercussão internacional por conta de livros como “Antes que a natureza morra”, de Jean Dorst, ou “Limites do crescimento”, de Donella Meadows, além de “Primavera silenciosa” de Rachel Carson; e dos movimentos ambientalistas no sul do Brasil, liderados por uma brava plêiade de homens e mulheres do quilate de José Lutzenberger, Augusto Carneiro, Giselda Castro e Magda Regner, conseguiu-se formar uma base social para implantar, apenas no início dos anos 90 (vejam quanto tempo se passou para que o Estado tomasse uma atitude), a Secretaria Estadual do Meio Ambiente, da qual fazem parte duas importantes fundações a FEPAM e a Fundação Zoobotânica (FZB).
A importância dessas fundações para o planejamento e controle ambiental é da maior grandeza, se não quisermos navegar ao sabor dos caprichos momentâneos das conjunturas e nos lançar no escuro. Fala-se muito no Brasil do ‘gigantismo do Estado’. O que temos, contudo, é o contrário. Isto é, há uma insuficiente institucionalização, quer dizer, capacidade técnica, para realmente promover a gestão ambiental. De fato, ela requer um conjunto de técnicos capacitados, equipamentos, laboratórios de análise e resposta rápida aos problemas que se colocam. Além disso, requer construção interdisciplinar de soluções, diálogo entre diversos agentes e políticas de concertação de médio e longo prazo.

CONSCIÊNCIA AMBIENTAL E POLÍTICAS PÚBLICAS
Não é possível realizar a gestão ambiental sem que ela esteja firmemente estruturada em quatro pilares: a) o conhecimento do ambiente em que vivemos e sua ampla difusão na sociedade; b) educação e promoção de uma cultura de cuidado com o ambiente e do patrimônio natural; c) programas de gestão ambiental transversais (integrando todos os órgãos do estado, e das empresas de produção comercial e industrial, bem como unidades domésticas) e temáticos (água, ar, solo, vegetação, fauna, etc.); d) sistemas participativos de gestão ambiental, que promovam a concertação, a diversidade e a educação continuada.

A QUEM INTERESSA SOLAPAR A AUTORIDADE DE GESTÃO AMBIENTAL
A crise da gestão ambiental que hoje se verifica decorre do fato de que, ao invés de se ampliar a capacidade de gestão – quer dizer, de institucionalização e aprofundamento da autoridade técnica de gestão ambiental -, paulatinamente essa autoridade está sendo solapada por todos os lados e meios.
O primeiro sintoma de solapamento dá-se pela ausência de programas estratégicos de gestão pública do meio ambiente, que deem permanente visibilidade a uma vontade política de gestão ambiental, como foi, por exemplo, o Programa pró-Guaíba, criado em 1989 e que hoje... não se houve mais falar. Poderia ser o caso de que suas finalidades tenham sido cumpridas, quais sejam melhorar e garantir controle das condições ambientais da região hidrográfica do Guaíba, a mais densamente habitada e aquela com maior impacto de atividades industriais. Se dermos uma rápida olhada nas condições ambientais de nossos rios metropolitanos, o Caí, Jacuí, Sinos e Gravataí, e do lago Guaíba, vamos ver de imediato que as finalidades não foram alcançadas.
Em 2006, por exemplo, uma mortandade de cerca de 100 toneladas de peixes no rio dos Sinos teria sido suficiente para demonstrar a crescente dificuldade de gestão ambiental metropolitana. Além da degradação dos rios, o problema se agrava quando vemos que outros órgãos de gestão metropolitana, a Metroplan, encontra-se hoje muito apagados. Como vemos, não há mais autoridade ambiental ou qualquer outra para a gestão da complexa megacidade metropolitana.

VULNERABILIDADES DECORRENTES DO ENFRAQUECIMENTO DA GESTÃO AMBIENTAL
Nesse compasso, a situação não tem como melhorar e as consequências podem ser muito mais caras que o orçamento das fundações como a FZB. A megacidade de Porto Alegre-Canoas-Esteio-Sapucaia do Sul-São Leopoldo-Novo Hamburgo-Gravataí-Cachoerinha-Alvorada-Viamão, que abriga nada menos de 4,3 milhões de habitantes, tem seu abastecimento de água a partir de mananciais bastante deteriorados. Estamos vendo o cenário de crise da água em São Paulo e em outras grandes cidades do sudeste brasileiro. Nossa situação não é melhor que a dessa região. Lá a seca colocou em evidência a vulnerabilidade ambiental das grandes cidades brasileiras. Quem acompanhou as imagens da crise hídrica paulista, deve ter visto com enorme espanto a deterioração ambiental do leito dos rios que recebem efluentes urbanos, como o Tietê.  A exposição subaérea do leito desse rio revelou um lodo preto, altamente contaminado, além de toneladas de resíduos sólidos de todos os tipos. Aqui não acontece de outro modo, de sorte que o que ajuda em certa melhoria da qualidade do abastecimento de água a partir desses mananciais é muito mais o fato de termos chuvas contínuas do que o controle da poluição. Se chover razoavelmente, a água pode ser retirada de níveis mais altos dos mananciais, evitando os fundos lodosos mais contaminados. Quando há seca, todo o sistema hídrico deteriora muito rapidamente, como aconteceu como lago Guaíba em 2005: houve uma intensa proliferação de algas, aumentando a eutrofização e deixando a água fétida.
Além disso, no caso do lago Guaíba, sabemos que há enorme tráfego de navios carregados de nafta. Cerca de mil por ano. Caso venha a ocorrer um acidente náutico em que um desses navios venha romper o casco e haja vazamento de nafta no Guaíba, teremos um enorme problema ambiental e humanitário. A principal dificuldade será a de captar água no Guaíba e o abastecimento poderá ficar muito comprometido. Não estamos aqui lidando com uma questão ideológica – como os desenvolvimentistas preferem ver os temas ambientalistas. Pelo contrário, estamos vendo o futuro imediato que pode nos aguardar se não tivermos órgãos ambientais capazes de prever e antecipar-se aos fatos.

A DEGRADAÇÃO DO JACUÍ
Outro sintoma da perda de autoridade de gestão ambiental também pode ser ilustrado pela degradação do Rio Jacuí causada pela exploração de areia em seu leito e margens. A crise tornou-se visível em 2013, quando a justiça interditou essa exploração. Há anos as areias do Jacuí no segmento próximo a Triunfo vinham sendo exploradas sem controle, em uma espécie de garimpo predatório em pleno século XXI. Trata-se de um excelente negócio, pois retiram as areias de um bem público que é também patrimônio ambiental – nossos rios e a água que bebemos – sem pagar nada por isso e, ainda, com custos muito reduzidos de transporte até o Cais onde vendem essa areia. De forma corajosa, a justiça interditou a exploração de areia no Jacuí. Que fez a poderosa indústria da construção civil? Lockout! Paralisou obras públicas em plena execução, chantageando assim a Justiça, o Estado e a população. A extração de areia foi retomada com promessas de controle, que logo trataram de burlá-lo, como foi noticiado na imprensa.
Não deveria essa indústria desenvolver estudos para mapear depósitos e apresentar um plano sustentável de exploração de areia? Agora, estão pressionando de todos os modos os órgãos de gestão ambiental para que seja liberada a exploração de areia no Guaíba, o que viria a ser um grande desastre. Todos sabem que o Guaíba guarda em seu leito perigosos poluentes industriais e domésticos decantados ao longo de anos de contaminação. Mexer nesse leito é devolver às águas esses contaminantes, como uma espécie de bomba química de efeito retardado, piorando a já precária qualidade das águas que utilizamos para nosso abastecimento.

A ÁGUA DO LAGO GUAÍBA: ÚNICO MANANCIAL DE PORTO ALEGRE
Ainda no final da década de 1970, assisti a uma conferência do saudoso José Lutzenberger, feita no auditório Dante Barone da Assembleia Legislativa. Ele gostava de utilizar figuras de impacto e, naquela oportunidade, estava referindo-se à contaminação do Guaíba. Disse que em um litro d’água do lago haveria de ter duas colheres de ‘excrementício humano’ (na verdade ele utilizou uma palavra bem mais direta). Lembro que a plateia ficou horrorizada. Passados cerca de quarenta anos, podemos dizer que nossos problemas tornaram-se bem mais complexos. Hoje, um litro talvez contenha apenas duas colheres de água. E esse não seria o problema principal. Para utilizar uma imagem metafórica, poder-se-ia dizer que esse litro deve conter também “meia colher” de metais pesados, muito tóxicos, como mercúrio, cromo, cádmio e chumbo. Na verdade, a concentração desses elementos é medida em partes por milhão ou mesmo bilhão. Porém, diante dessas quantidades ínfimas, alguém pode achar que se trata de algo inofensivo, por isso utilizei a metáfora da ‘meia colher’. Mas ocorre que basta uma pequena concentração desses elementos contaminantes para arruinar a saúde humana.
O que é preocupante? O fato de que utilizamos exatamente essa água para nosso abastecimento, em uma espécie de hidrodiálise em que os processos de tratamento d’água das cidades, por não preverem a complexidade atual, não dão conta da situação. Donde vamos tirar água potável para nosso consumo? Há 400 milhões disponíveis nos orçamentos do Estado e municípios para que as cidades da região metropolitana possam captar água em locais distantes das grandes plumas de contaminação urbana-industrial?

ATAQUES À CIÊNCIA E AO PATRIMÔNIO NATURAL
O terceiro sintoma dessa crise faz-se evidente com o recente anúncio de fechar a nossa estimada Fundação Zoobotânica, a saber: uma das mais importantes instituições científicas de nosso estado, que cuida de dois patrimônios fundamentais do povo gaúcho: o impressionante acervo de espécimes vegetais, animais e fósseis, coletados ao longo de anos de trabalho, realizados ainda pelo Padre Rambo nos anos de 1950; a paisagem de nossa terra, cuja preservação depende de estudos da biodiversidade e da extensa documentação por meio de diagnósticos e mapas feitos por excelentes equipes técnicas que nela trabalham.
Ao longo da história, governos autoritários sempre atacaram a ciência e queimaram livros em praças públicas. Vemos agora um raro exemplo de um governo eleito atacando a ciência. Seria ele autoritário? Sim, estamos vivendo uma espécie de autoritarismo às avessas que resulta de um candidato sem programa que, agora no governo, faz uso da tábua rasa da crise contábil para justificar a completa ausência de políticas públicas. Ao invés da fórmula de estado-mínimo dos neoliberais dos anos 1990, realiza a política nula, que se apoia também na orquestração da grande imprensa de demonologizar a política. É uma espécie de terrorismo de estado, que expõe à máxima humilhação o funcionário público, portanto a autoridade pública. Que ataca a ciência e revela o teor obscurantista de seus verdadeiros propósitos. Anular a autoridade do conhecimento simultaneamente com a autoridade pública, em geral, e da gestão ambiental, em particular, num contexto de complexidade da região metropolitana originará um passivo que as gerações futuras não terão como nos perdoar.
As gerações de nossos avós e bisavós foram heroicas. Trabalharam muito, e desenvolveram muito nosso estado. Em geral, as gerações seguintes conseguiram melhorar o nível de vida. Porém, no futuro próximo, grande parte da riqueza acumulada durante essas gerações deverá ser gasta para remediar os graves danos ambientais, como por exemplo, buscar água em mananciais cada vez mais distantes, a custos muito elevados. O problema é: quem vai pagar a conta? As grandes empresas poluentes têm seus mecanismos de escape e os custos serão pagos pelo cidadão. Eles vão exigir do estado, que não terá como resolver tal conta. Essa sim, muito maior que os baixos custos do orçamento da Fundação Zoobotânica.
 

  
             
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